quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Além-mar
Maio 2006

Renato Kizito Sesana



O fermento das periferias

Vivo na periferia da periferia de Nairobi. Mas aqui estão sempre a acontecer coisas novas, que nunca acontecem nos condomínios fortificados do centro da capital. Na verdade, é aqui que surgem todos os fermentos da vida.

Quando, em 99, vim viver para aqui, a localidade chamava-se Riruta. Continuo a viver na mesma casa, mas o aumento da população fez com que os nomes também se multiplicassem. Riruta desmultiplicou-se em Riruta East, Ndurarua, Satellite, Railway, etc. assim, agora vivo em Nairobi, periferia do Ocidente. As periferias expandem-se.

Em Riruta e arredores, que somam um total de mais de 100 mil habitantes, as estradas estão em condições calamitosas. Os esgotos, a rede eléctrica, a linha telefónica chegam só às estradas principais. O posto da polícia é um conjunto de barracas de chapa enferrujada. Serviços sanitários e escolas públicas são totalmente inadequados. E todavia, por incrível que possa parecer, esta periferia de periferia de Nairobi é para muitas pessoas o centro, é a meta que promete o fim de todos os sofrimentos, o sonho de um futuro mais bem mantido vivo através das cartas de amigos que aqui se estabeleceram há já alguns anos.

Quem gostaria de viver aqui? Não só quem vive nas zonas rurais semiáridas do Quénia, onde serviços sanitários e escolas públicas são praticamente inexistentes, mas também centenas e centenas de desesperados que fugiram da área dos Grandes Lagos. De facto, o crescimento galopante de Riruta deve-se sobretudo à imigração clandestina daquela área.



Viver no paraíso

À pergunta: "Porque vieste viver para Riruta?", Jean Jacques, burundês licenciado em Psicologia e casado com uma ruandesa, responde: "Quando o governo tanzaniano decidiu obrigar os refugiados a voltar para os seus países de origem, mandaram-nos para a fronteira. Tínhamos de atravessar o rio Kagera. Sob o olhar dos representantes da ACNUR, dos soldados ruandeses e dos tanzanianos, as pessoas eram atadas com uma corda. Filas inteiras de pessoas preferiram lançar-se ao rio e ali morrer do que voltar ao Ruanda. Até hoje ninguém denunciou o facto. Eu decidi fugir."

Pierre, esse é da República Democrática do Congo e acaba de fazer 19 anos. Está em Riruta há ano e meio, e, precisamente no dia em que escrevia este texto, fui com ele ao encontro com dois investigadores do Tribunal Penal Internacional. Pierre foi um menino-soladado, e fugiu do seu país quando o senhor da guerra lhe ordenou que matasse um jornalista e um missionário, pessoas que o incomodavam porque denunciavam o que estava a acontecer. Pierre decidiu que não podia mais obedecer a estas ordens – já tinha assassinado dezenas de pessoas – e escapou, porque recusar-se a matar significaria inevitavelmente a sua morte. A primeira vez que o encontrei, na paragem dos autocarros que chegam da Campala, com o desespero e o medo estampados num rosto ainda de criança, parecia um animal preso na ratoeira. Depois, notei que se ia acalmando de dia para dia, enquanto procurava voltar a uma vida normal juntamente com os outros jovens da casa onde vivo. Hoje, enquanto contava aos investigadores a sua vida, durante mais de duas horas conseguiu controlar-se e controlar toda a desconfiança nas instituições que a sua experiência lhe incutiu. A dada altura, desatou a soluçar de modo incontrolável; e quando conseguiu falar, disse: "Não quero pensar mais em todo o mal que fiz, nem no mal que me fizeram a mim."




O encontro com Deus

Em Kibiria, porém, não há só histórias dramáticas. As periferias são também, para quem é capaz de ver, laboratórios da sociedade do futuro. Aqui, a sociedade muda, inventa novas formas de sobrevivência. Nos bairros de Nairobi rica reforçam-se as cercas com arame farpado, há quem se feche atrás dos muros, aumenta-se a potência dos holofotes para iluminar todos os recantos das vivendas e multiplicam-se os seguranças (todos pobretanas que de dia vivem em bairros como Riruta e de noite protegem os ricos); o ideal é que não aconteça nada, que ninguém perturbe o mundo dourado em que se vive. Ao contrário, nas periferias surgem todos os fermentos desta sociedade. Alguns são fermentos de violência e de ódio, mas outros são fermentos de solidariedade e dignidade.

Aqui estão os criadores: o Lionel que, há menos de 30 anos, anda a preparar a sua morte por alcoolismo, mas que pinta quadros onde a vida esplode com cores e formas das mais extraordinárias; a Miriam, que vive só numa barraca, onde, à noite, com uma velha máquina de escrever, inventa a trama de uma telenovela sobre a vida nos bairros de barracas que gostaria de vender a uma televisão privada; o Charles, também ele ruandês, e também ele ilegal, que, depois de um dia de trabalho como técnico de computadores, enquanto a mulher e os filhos preparam o jantar num fogareiro a carvão, trabalha num portátil para desenvolver um novo software; e está também a Anjela, que quer dar vida a um grupo de formação para seropositivos. A periferia, para quem crê e quer deixar-se renovar, é o encontro com o Deus que não tem nada, que vem de baixo, que nos olha com os olhos das crianças, nos fala com a voz das prostitutas, nos abençoa com a voz do velho que está para morrer.



A África mediática

Quem decidiu que Kabiria é a periferia? Onde está o centro? Não teremos talvez, antes de mais, de pôr em discussão a ideia de centro? Não é esta ideia o resultado de uma doença grave, que infectou todo o ocidente, e que se chama, vejam só, etnocentrismo?... Ainda para mais na sua variante mais patológica, o racismo…

O Ocidente, o Norte do mundo, acredita ser o centro do mundo, o modelo de desenvolvimento válido para todos, e que se os outros não o imitam é simplesmente porque são atrasados corruptos, preguiçosos e, naturalmente, pouco inteligentes. Fecha-se por isso num isolacionismo que o condena a não compreender os outros, e portanto a não se interessar pelos outros. Há uma parte da opinião pública ocidental que se insurge contra este estado de coisas, que procura compreender os problemas em profundidade, mas esta parte, que está porventura a aumentar, é certamente ainda uma minoria que não consegue influir nas opções dos grandes meios de comunicação.

Quantas vezes ouvi dizer a competentes e apaixonados enviados especiais de visita a um país africano coisas do género: "O meu director diz que uma notícia por dia sobre a África é mais que suficiente. Portanto, como já se está a falar da Somália, não há esperança de que qualquer outro país africano consiga espaço. Portanto, como já se está a falar da Somália, não há esperança de que qualquer outro país africano consiga espaço. A menos que aconteçam coisas absolutamente extraordinárias, como novas guerras, milhares de mortos, carestias.”


Realmente, guerras, mortos e carestias parecem ser as únicas coisas que podem interessar quando se fala da África.