terça-feira, 26 de junho de 2007

Excluídas e invisíveis - Carlos Reis

Carlos Reis
Além-Mar, Dezembro de 2006

Milhões de crianças que são vítimas de exploração e discriminação graves tornaram-se invisíveis aos olhos da comunidade internacional. Não são contadas nem tidas em conta. «Desaparecem», quando são objecto de tráfico ou obrigadas a trabalhar como servos. Outras, como as crianças de rua, vivem à vista de todos, mas são sujeitas a maus-tratos e não têm acesso à escola nem a cuidados de saúde.


Bilu e João são dois irmãos que lutam juntos pela sobrevivência, recolhendo cartão e sucata de metal nas ruas de São Paulo, no Brasil. Blanca, de 13 anos, vive um verdadeiro pesadelo por ser portadora do vírus HIV: é discriminada na escola que frequenta em Brooklyn, nos Estados Unidos, e nem os que lhe estão mais próximos a poupam à angústia e ao estigma da doença. Ciro é um adolescente que deixou para trás os pais negligentes e uma família disfuncional, e passou a sustentar-se através do roubo nas perigosas ruas de Nápoles, em Itália. Uros, um menino bósnio internado num degradado reformatório, não quer sair de lá, pois pelo menos ali sente-se protegido: uma vez cá fora, o pai obriga-o de novo a roubar.
Em algumas zonas da África, crianças-soldado de milícias famintas manipulam metralhadoras com destreza. Na China, as diferenças sociais entre duas meninas da mesma idade são gritantes: uma é rica e a outra mal sobrevive a vender flores nos semáforos de uma grande metrópole. Estas poucas e breves histórias ajudam a dar um rosto a milhões de vítimas silenciosas que, para além do mais, são as mais desprotegidas e vulneráveis face ao álcool, drogas, abusos sexuais e físicos, infecções, má nutrição.
As situações de maior vulnerabilidade surgem à margem dos programas de desenvolvimento e permanecem invisíveis em muitas sociedades onde as crianças estão ausentes dos debates, da legislação, das estatísticas e dos meios de comunicação. A pobreza, o VIH/sida e os conflitos armados, aliados a uma má governação e a várias formas de discriminação, excluem da escola e privam de cuidados de saúde muitos milhões de crianças de todo o mundo, o que as torna ainda mais vulneráveis à exploração e à exclusão.
As crianças que vivem em situações de conflito armado, por exemplo, são frequentemente vítimas de violação e de outras formas de violência sexual. O risco de se tornarem esquecidas é maior para as crianças que não possuem identificação: mais de metade dos nascimentos que todos os anos ocorrem nos países em desenvolvimento (excluindo a China) não são registados, o que rouba a mais de 50 milhões de crianças o direito a algo tão fundamental como o estatuto de cidadão, para além de as banirem à partida das estatísticas oficiais. Assim, não são contadas nem tidas em conta.

Guerra e crime
Em Novembro, as Nações Unidas acusaram os militares do Sri Lanka de recrutarem crianças para uma milícia que luta contra o grupo separatista Tigres Tamil. O conselheiro especial da ONU, Allan Rock, representante da ONU em questões relacionadas com Crianças e Conflitos Armados, afirma que tem provas do envolvimento directo de soldados do país no alistamento forçado de crianças para a milícia dissidente dos Tigres Tamil, a Facção Karuna. «Encontrámos provas directas e indirectas de cumplicidade e participação», assegura Allan Rock, comentando o facto de crianças de 13 e 4 anos terem sido raptadas de pequenas povoações sem que tivessem sido realizadas investigações ou prisões por parte das forças de segurança.
No Sudão, durante os longos anos da guerra, «a Igreja Católica foi a única fonte de esperança para milhares de crianças», diz o cardeal Gabriel Wako, arcebispo de Cartum e presidente da Conferência Episcopal. «Uma das maiores preocupações da Igreja sudanesa são as crianças órfãs. Infelizmente, a guerra deixou um grande número de órfãos de pai e muitos perderam ambos os pais. Por não terem uma família que se ocupe delas, a situação destas crianças é muito difícil e precária. Até aqueles que vivem apenas com a mãe se encontram em dificuldades, porque, infelizmente, as mulheres são uma das categorias mais desfavorecidas da sociedade sudanesa.»
Nesse sentido, a Igreja está a apostar em programas de ajuda à infância, «sobretudo no campo sanitário e do ensino», assegura o cardeal. Um pouco por todo o mundo, ela é uma das instituições que mais contribuem para fazer face às necessidades das crianças excluídas. Apenas um exemplo: é graças à generosidade das próprias crianças dos 110 países onde se encontra presente a Obra da Santa Infância que estão a ser financiados mais de três mil projectos de assistência aos menores mais carentes.
Embora os governos e a sociedade civil também se encontrem envolvidos em inúmeros programas de apoio, muitas permanecem desprotegidas. Só na fronteira entre a Argentina, Brasil e Paraguai, milhares de crianças e adolescentes vivem em condições de pobreza extrema, em “casas” sem saneamento ou água potável. Para além do mais, o crime organizado que grassa na região representa uma grave ameaça, de que as crianças são vítimas preferenciais. Entre os seus “negócios” contam-se a exploração sexual, o tráfico de drogas e de seres humanos.

Violência e discriminação
Muitos actos de violência perpetrados contra as crianças permanecem na sombra e têm muitas vezes a aprovação da sociedade. A violência contra as crianças inclui violência física, psicológica, discriminação, negligência e maus-tratos e acontece em qualquer lugar, em todos os países e sociedades e em todos os grupos sociais. Utilizando diversos estudos e dados sobre a população, a Organização Mundial de Saúde estima que, no mundo actual, as relações sexuais forçadas que envolvem menores de 18 anos afectam 73 milhões.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, dos 218 milhões de crianças trabalhadoras, 126 milhões estão envolvidas em trabalhos perigosos e prejudiciais, 5,7 milhões realizam trabalhos forçados em regime de servidão, 1,8 milhões estão envolvidas na prostituição e 1,2 milhões já foram vítimas de tráfico. Desprovidos de cuidados dos pais, milhões de órfãos, crianças de rua e de jovens detidos crescem sem o afecto e protecção familiar. Estima-se que 143 milhões de crianças de países em desenvolvimento – 1 em cada 13 – perderam pelo menos um dos pais.
Muitos dos Estados frágeis, países que não têm meios ou vontade para proporcionar serviços básicos aos seus cidadãos, discriminam os menores com base no sexo, etnia ou deficiência. Estes factores de exclusão impedem a entrada de milhões de menores na escola e bloqueiam a prestação de serviços essenciais. Calcula-se que haverá no mundo cerca de 150 milhões de crianças portadoras de deficiência, muitas delas sem possibilidade de acesso à educação, cuidados de saúde ou apoio afectivo em consequência de uma discriminação sistemática. Um número seco e assustador: anualmente, cerca de 53 mil menores são vítimas de homicídio.
A violência tem «consequências duradoiras, não apenas para as crianças e seus familiares mas também para as comunidades e países», alerta Ann Veneman, directora executiva da Unicef. Para Paulo Pinheiro, perito independente nomeado pelo secretário-geral das Nações Unidas para liderar o estudo «Violência contra as Crianças», «a melhor forma de tratar do problema é impedir que aconteça. Todas as pessoas têm um papel a desempenhar, mas cabe aos Estados assumir a principal responsabilidade.

Desemprego e pobreza
Em todo o mundo, o desemprego é outro dos grandes problemas que os jovens enfrentam. E que faz que um em cada quatro – cerca de 300 milhões de pessoas – viva abaixo do limiar da pobreza. Segundo a Organização Internacional de Trabalho (OIT), o número de jovens entre os 15 e 24 anos que estão desempregados aumentou de 71 milhões, em 1995, para 85 milhões, no ano passado. A população juvenil cresceu 13 por cento entre 1995 e 2005, enquanto a disponibilidade de empregos para este segmento da população só registou um crescimento de quatro por cento. Como consequência, os jovens desempregados representam 44 por cento do total de desempregados a nível mundial. Estima-se que sejam necessários 400 milhões de empregos produtivos, ou mais e melhor emprego, para aproveitar o potencial da juventude actual.
«A incapacidade das economias para criar empregos produtivos está a atingir os jovens em todo o mundo», afirma o director-geral da OIT. Segundo Juan Somavia, além de gerar um défice de oportunidades de trabalho e altos níveis de incerteza económica, esta preocupante tendência ameaça desperdiçar um dos principais recursos de qualquer sociedade – a juventude. «Neste momento, estamos a desperdiçar o potencial económico de uma grande parte da população, em especial nos países em desenvolvimento, que são os que menos se podem permitir esse desperdício. Por isso, os países devem concentrar-se nos jovens», preconiza.
As regiões do Médio Oriente e do Norte de África registam a taxa mais elevada de desemprego juvenil (26 por cento), quase o dobro da que se verifica na União Europeia: 13 por cento. Mesmo nos casos em que existe emprego, isso não quer dizer que assegure o sustento dos jovens. Ainda de acordo com a OIT, a pobreza afecta cerca de 56 por cento dos jovens trabalhadores, que se confrontam também com a possibilidade de ter largas jornadas de trabalho, contratos a termo certo, salários baixos, protecção social reduzida ou inexistente.
Regista-se também um preocupante aumento do número de jovens que não trabalha nem estuda. Na verdade, o acesso à educação continua a ser um problema para muitos e o analfabetismo ainda é um desafio importante em muitos países em desenvolvimento. Os desafios são maiores para as jovens, já que em algumas regiões, devido à tradição cultural, não se lhes concede a oportunidade de conciliar o trabalho doméstico com um emprego.
Mas, apesar de um cenário tantas vezes tão negro, os jovens dispõem de um capital único: não perdem a capacidade de sonhar.

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