quinta-feira, 5 de julho de 2007

De neoliberais a neo-solidários - Diego Marani

Além-Mar
Outubro 2000
Excertos


Enrico Chiavacci, um dos teólogos italianos do nosso tempo que mais tem estudado as relações entre a moral cristã e a economia, afirma que «é preciso acabar com a distinção, tão cara nos ambientes católicos, entre liberalismo, que seria uma coisa boa, e capitalismo selvagem, a rejeitar. O capitalismo não pode ser senão selvagem, porque tende à maximização do lucro.»
E vai mais longe: «A teologia moral católica cingia-se, até ao Concílio Vaticano II, ao “não roubar”, único preceito de ética normativa em matéria de economia. Posso provocar dez milhões de mortos de fome deslocando capitais de um lado para o outro no mundo, mas não roubei; por isso, não cometi qualquer pecado. Para uma moral destas não há deveres de justiça para com o pobre. Esta não era, porém, a posição do Evangelho, dos padres da Igreja ou dos grandes teólogos medievais.»
Como se há-de comportar o cristão na economia? É uma pergunta que não diz respeito unicamente às relações Norte/Sul mas também às de cada pessoa nas sociedades ricas do Norte do mundo.
Não há dia em que não se fale de nova economia, o comportamento das bolsas ocupa grandes espaços nos órgãos de informação e condiciona a vida dos investidores. Mas será lícito a um cristão ganhar 100, 50 ou até dez por cento ao ano através dos jogos da bolsa, em acções ou fundos de investimento? Será um problema moral entrar no jogo da bolsa? Perguntas que poucos têm a coragem de se colocar. E ainda menos aqueles que lhe ousam responder.
«A responsabilidade da teologia católica consiste em não ter prescrito um certo número de disposições morais, deixando ao arbítrio de cada um todo o espaço que se segue à compra legítima da propriedade privada.»

Idolatria do mercado

Que relação existe entre globalização, prosperidade e riqueza no Norte, exclusão e pobreza no Sul? A resposta de Chiavacci é trágica, mas sem rodeios: «Hoje o sistema económico global prospera com a fractura entre o Norte e o Sul. Tende a conservá-la onde já existe e, até, a provocá-la.» Porque o sistema mundial do capital, hoje conhecido também por globalização, «não está interessado em satisfazer as necessidades básicas para o desenvolvimento humano, mas unicamente aquelas necessidades ou desejos cuja satisfação fomenta o lucro». Portanto, nesta lógica, seria normal para um cristão não se interrogar para saber aonde vão acabar as suas poupanças, o importante é que elas rendam. Porque «ao sistema não interessa o que é produzido com o capital investido, mas apenas o lucro que se pode obter com o investimento: armas ou remédios, droga ou escolas, poluindo ou não poluindo, criando emprego ou desemprego (antes, cada vez mais se investe para criar desemprego, aumentando assim os lucros!) são opções que deixam o investidor perfeitamente indiferente».
Alain Durand, director da DIAL, agência de notícias sobre a América Latina com sede em Lião (França), publicou um artigo intitulado «Para uma prática cristã da globalização» na revista Foi et Développement, onde afirmava: «A palavra de Deus pode ajudar-nos a compreender que a globalização de hoje se encontra desvirtuada pelo mundo neoliberal onde prospera. Somos convidados a passar da globalização neoliberal para a solidária.»
Senão, contribuímos para criar pobreza e marginalização em todo o mundo.
E a globalização — «religião» económica neoliberalista legitimada por uma política neoliberal — «tem uma grande responsabilidade neste aumento do número de pobres e de crescimento das desigualdades».
Neste mercado mundial que não dá prioridade às necessidades básicas, que não cuida das suas vítimas a criação de riquezas parece ter como única finalidade a perpetuação da produção: o consumo de todos para o lucro de poucos como norma moral universal.
A melhor e mais segura forma de amar o nosso próximo seria portanto esta: «Viver como egoísta no livre mercado global.»
Chiavacci diria mais: «Não apenas a riqueza, mas o enriquecimento constante como fim em si mesmo tornou-se o novo ídolo, o novo ideal de vida nos países ricos. Estamos diante do vitelo de ouro, que tem de se adorar, ao qual todos os outros valores humanos e até religiosos têm de inclinar-se. Mas este biombo esconde a visão clara desta hora dramática de uma idolatria triunfante e torna-nos cúmplices dela; talvez inconscientemente, mas não isentos de culpa.»

Eles empobrecidos, nós desumanos

Esta idolatria do mercado transforma os seus fiéis em consumidores. «O lugar sagrado onde os consumidores vivem com mais intensidade esta religiosidade do mercado são os centros comerciais», explica Jung Mo Sung, teólogo coreano emigrado ainda novo para o Brasil, autor de algumas obras que denunciam o deus oculto do capitalismo, porque «ao mercado são atribuídas todas as características de um Deus» e, para a Vulgata neoliberal, «o mercado é a fonte da vida, lugar onde a vida é produzida e reproduzida».
«Também nós, países ricos, estamos ameaçados por um desenvolvimento desumanizante», recorda Chiavacci. «A lógica económica dominante tornou-se já a lógica global de uma “boa vida”: um modelo cultural profundamente inserido na mentalidade do Norte. A lógica que torna famintos três quartos da humanidade é a mesma que está a desumanizar o outro quarto mais rico.» Perda do sentido da vida, de relações afectivas gratificantes, de contacto profundo com a natureza, perda da capacidade de se sentir próximo de si próprios, dos outros, da criação, de Deus. Perda do relacionamento, mascarado com a solidão da hipercomunicação tecnológica do telemóvel e da Internet; anestesiado pelo papel de meros repetidores do monólogo colectivo a que a televisão, em primeiro lugar, nos reduziu; fomentado pela vulgarização ocidental de tantos negócios da nova era: desde a psicoterapia ao ioga, das clínicas de beleza às drogas mais ou menos sintéticas e às realidades mais ou menos virtuais.
Os que pertencem às classes médias do Norte rico — explica Mo Sung —, «quando se sentem deprimidos e o seu humanismo se corrompeu pelas contradições da vida, vão ao seu templo/centro comercial, onde, comprando, se sentem mais humanos e animados. Em contacto com a nova sacralidade, as pessoas sentem-se fortificadas e aptas a enfrentar a realidade quotidiana, feita de competição e de concorrência». A palavra de ordem «melhor relação qualidade/preço» tornou-se um dogma, capaz de dar sentido à nossa ânsia de consumo.
Não obstante tudo isto, há uma porta de saída para aquilo que só na aparência é a única realidade e o único pensamento: «Colocar no coração do sistema o espírito de solidariedade, em vez do espírito de concorrência.»
Durand encontra-se também em sintonia com Jung Mo Sung quando afirma que este «sistema económico de produção é indefinido e incontrolado, reabsorve e reutiliza constantemente o tempo e as energias que o progresso da produtividade liberta, a fim de se poder ocupar também de outras coisas» e, por isso, «é urgente na nossa sociedade dar lugar a realidades como o rosto do outro, a palavra, o dom, o perdão, a criatividade, a festa».

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