segunda-feira, 23 de julho de 2007

Ninguém e o Pássaro Azul - Fernando Cardoso


Vou contar-vos uma história. Não é uma história alegre. Mas a vida também não é só feita de risos. De gargalhadas. É um pouco como a rosa: bela e com espinhos. Às vezes com muitos espinhos...
Vou falar-vos de um menino real. Real sem realeza. Real porque verdadeiro. Verdadeiro porque existe.
Vou falar-vos de um menino de seis anos. Que não parece ter seis anos. Porque o seu corpo é franzino. Porque os seus olhos são demasiadamente tristes.
Esse menino chama-se NINGUÉM. E não sabe o resto do nome. O sobrenome. Nunca lho disseram. Nunca ouviu chamar pelo nome do Pai. Porque o Pai fora mais cedo para o Céu — explicaram-lhe um dia.
NINGUÉM vive numa água-furtada. Direi que vive num velho caixote cravado num telhado de telhas partidas. E como é muito pequeno só chega ao parapeito da janela com as débeis mãozitas.
Às vezes põe-se em bicos de pés. Quer ver a rua. Os carros e as pessoas. As pessoas e os carros. Mas NINGUÉM não vê ninguém. Nem os carros. Nem a rua.
Então NINGUÉM vai buscar um tosco banco de madeira. A Mãe dissera-lhe que era perigoso empoleirar-se no banco. Mas às vezes NINGUÉM não resiste à tentação. E sobe. Sobe mas não vê o que queria ver. Porque NINGUÉM está sempre na mesma. Não cresce. Pelo menos não cresce ao ritmo da sua vontade de ver a rua, as pessoas e os carros.
Mas os seus olhos grandes e tristes ficam menos tristes, quando salta para cima do tosco banco de madeira. Porque, nessa altura, NINGUÉM vê uma nesga de Céu. Um pouco de sol. Uma nuvem que passa.
E NINGUÉM gostaria de ser nuvem. Ir pelo Céu fora visitar o Pai. E de lá ver a rua, os carros e as pessoas.
NINGUÉM é um rapazinho que pensa e sonha. Sonha e pensa. E nem sequer tem brinquedos para brincar...
Só de longe a longe NINGUÉM vê a Mãe. Só de longe a longe, porque a Mãe de NINGUÉM trabalha a dias em várias casas. Esfrega escadas. Esfrega escadas. Esfrega escadas.
Quando ela vai para o trabalho, é muito cedo. E NINGUÉM ainda dorme. Quando regressa a casa, é muito tarde. E NINGUÉM já dorme.
NINGUÉM gostaria de ter um irmão para conversar e brincar. Mesmo sem brinquedos. Embora NINGUÉM não saiba precisamente o que é brincar. Nem sozinho nem com o irmão que nunca teve.
NINGUÉM não se importaria de dividir com ele o pão e a sopa. O pouco que a Mãe lhe deixa todos os dias.
A princípio NINGUÉM não compreendia porque estava sempre sozinho. Por que motivo só via a Mãe de longe a longe.
Então a Mãe contou-lhe a história do Pequeno Polegar. A única história que ela lhe contou. E explicou-lhe que preferia trabalhar todo o dia a abandoná-lo por não ter de comer. Tal como fez a mãe do Pequeno Polegar. E como infelizmente tantas outras. Por não terem comida para dar aos filhos. E não só por isso...
NINGUÉM compreendeu que estava condenado a viver sozinho. Praticamente sozinho. Naquele cárcere. Naquele velho caixote cravado no telhado de telhas partidas. Sem ver a rua, os carros e as pessoas. Sem ver a Mãe, senão de longe a longe.
Ele tinha, por vezes, mais fome de falar do que de co­mer. Por isso, a cada passo falava com a Mãe. Embora a Mãe não o ouvisse. Estava longe a trabalhar.
— Obrigado, Mãe, pela sopa. Está tão boa! Tu sabes que eu gosto da sopa de feijão. É por isso que a fazes tantas vezes. Não é verdade, Mãe?
Outras vezes, NINGUÉM agradece uma fatia de chouriço, de marmelada ou de queijo.
Que importa que a Mãe não o ouça?! NINGUÉM precisa de lhe falar. E de lhe agradecer. Sobretudo depois de ela ter contado a história do Pequeno Polegar...
Um dia NINGUÉM estava muito triste. Imensamente triste. Tinha partido a tigela da sopa. Desejava dizer à Mãe que a tinha partido sem querer. Sem culpa. E disse. Disse como sempre. Sem a presença da Mãe.
Mas desta vez ele pretendia que a Mãe soubesse do seu desgosto. Ouvisse mesmo a sua voz. Já que ainda não sabia escrever...
E à noite resolveu não se deitar. Iria esperar pela Mãe. Noite fora.
Mas quando a Mãe chegou, encontrou-o a dormir junto à porta. Com os cacos da tigela nas suas débeis mãozitas.
A Mãe deitou-o e agasalhou-o o melhor possível. E beijou-o. Beijou-o com a leveza e a ternura das mães.
Era Outono. Lá fora o vento arrancava impiedosamente as folhas das árvores.
Ela compreendeu o que o filho lhe quisera dizer. E ao outro dia NINGUÉM tinha uma tigela nova. Para comer a sopa de feijão, de que tanto gostava.
Cada vez mais NINGUÉM se convencia de que valia a pena falar à Mãe. Talvez ela o ouvisse. Mesmo distante.
— Mãezinha, eu não vou partir a tigela nova. Eu prometo. Ela é tão bonita! E tem uma senhora linda. Como tu.
Ontem NINGUÉM esteve empoleirado sobre o tosco banco de madeira. A ver a nesga de Céu. Mas não viu nenhuma nuvem passar. Nenhum tapete voador. Porque todo o Céu estava nublado.
Ontem nem desejou ir ao Céu. Porque seria difícil encontrar a Estrela habitada pelo Pai...
E hoje NINGUÉM teve uma visita inesperada. Um pássaro azul poisou no parapeito da janela.
A princípio NINGUÉM assustou-se. O pássaro era grande. Grande e azul. Depois compreendeu que viera comer as migalhas que deixara cair na véspera, quando empoleirado no tosco banco de madeira. A ver o Céu nubloso.
Então NINGUÉM perdeu o medo. E quis chegar ao pássaro azul. Com as débeis mãozitas.
Mas o pássaro voou. E NINGUÉM ficou ainda mais triste. Desejava-o para companheiro. Porque gostou dele. E queria com ele matar a solidão.
E na esperança de o pássaro azul voltar, NINGUÉM destinou-lhe parte do pão. Desfê-lo em migalhas. E foi colocá-las no parapeito da janela.
Uma esperança tinha nascido. E algo importante na vida de NINGUÉM. Na vida monótona do pequeno NINGUÉM.
Ao outro dia, mal pôs os pés fora da cama, correu. A ver se o pássaro azul voltara. Mas não!
Então uma lágrima rolou-lhe pelo rosto. Depois lembrou-se de ir ver se as migalhas ainda estavam no parapeito da janela. Subiu ao tosco banco de madeira. Empoleirou-se com ansiedade. Empoleirou-se mais do que nunca. Caiu do banco e magoou-se. Mas não chorou. Pelo contrário. Os seus olhos demasiadamente tristes alegraram-se. Vestiram-se de prata e ouro. O pássaro azul tinha voltado. E mais: tinha comido do seu pão.
Algo animava agora o seu mundo. E com ele o compartilhava. Os dias passaram a ter sentido: dividir o naco de pão com o pássaro azul.
As débeis mãozitas passaram a ser úteis.
E contava à Mãe as visitas do pássaro azul. Talvez a Mãe não o ouvisse. Mas o importante era contar-lhe.
E todos os dias preparava as migalhas para o pássaro azul. É certo que não o via. Mas o importante é que ele vinha todos os dias comê-las. Como todos os dias a Mãe vinha dormir a casa. Embora NINGUÉM não a visse.
E um dia o Céu desabrochou. Abriu-se em luz. O ribombar dos trovões assustou o pequeno NINGUÉM. E o pássaro azul veio bater-lhe à janela. Com o longo bico.
NINGUÉM subiu ao tosco banco de madeira. Um pouco pasmado. Um pouco a medo. Um tanto encantado. E abriu-lhe a janela.
Lá fora chovia torrencialmente. E nas telhas partidas a chuva parecia tocar estranha sinfonia. O pássaro azul sacudiu as asas molhadas. Depois ficou imóvel sobre o parapeito da janela.
NINGUÉM não sabia o que fazer. Olhava-o de baixo para cima. De boca e olhos muito abertos.
Tinha-lhe falado tantas vezes... e ele distante. E agora que ele estava ali faltavam-lhe as palavras.
Emudecera por completo. Rendido a tão forte e estranha emoção.
Desejava fechar-lhe a janela. Para que ficasse sempre a seu lado. Mas o pássaro azul podia zangar-se. E NINGUÉM não queria.
Incapaz de articular palavra, foi buscar-lhe mais migalhas.
Quando voltou, encontrou-o sobre o tosco banco de madeira. O pássaro azul aproximara-se dele. Era como se o céu azul entrasse todo de repente pelo velho caixote...
E NINGUÉM ganhou coragem. Estendeu-lhe a débil mãozita. E o pássaro azul depenicou as migalhas de NINGUÉM. Uma a uma.
Os olhos demasiadamente tristes de NINGUÉM brilhavam. De uma felicidade até aí nunca experimentada. Porque o pássaro azul comera da sua débil mãozita.
De novo tentou falar-lhe. De novo a voz se lhe prendeu. Talvez por não saber que dizer. E tantas coisas que tinha para lhe dizer. E tantas para lhe perguntar.
Prendera-se-lhe a voz. Talvez porque tudo aquilo era bom demais para ser verdade. Talvez porque tivesse a sensação de estar a sonhar. Não era a primeira vez que sonhava com o pássaro azul.
Entretanto o pássaro azul voou para cima do parapeito da janela.
NINGUÉM estremeceu. Teve a noção do risco. Da perda do amigo. Do seu único amigo.
Lá fora a chuva deixara de cair. Há muito também se deixara de ouvir a estranha sinfonia da chuva nas telhas partidas.
E o pássaro azul olhou-o também com olhos tristes. Como que a dizer que tinha de partir.
Depois NINGUÉM, estupefacto, ouviu-o despedir-se: Adeus! Obrigado! Adeus! Adeus!.
NINGUÉM ainda estendeu as débeis mãozitas. Como a implorar-lhe que não o deixasse sozinho.
Mas o pássaro azul já não viu o seu gesto. E partiu. Voando.
Então NINGUÉM voltou a vestir os seus olhos demasiadamente tristes. Da cor da violeta.
O pássaro azul não regressou mais. Nem sequer ao telhado das telhas partidas. Para comer as migalhas de NINGUÉM.
Todos os dias NINGUÉM se empoleirava no tosco banco de madeira. E todos os dias descia derreado com o peso da mágoa. Da mágoa de o pássaro azul já não querer as suas migalhas. Até que NINGUÉM adoeceu.
À noite a Mãe deu por isso. Porque NINGUÉM não tinha comido nada. Absolutamente nada.
Ao outro dia a Mãe não foi trabalhar. E correu a chamar o médico.
NINGUÉM ardia em febre. E no entanto o clínico não descobriu qualquer doença.
– Ele delira. É da febre. Só fala num pássaro azul. Num pássaro azul que lhe disse adeus e lhe agradeceu. – comentou o médico um tanto irónico, um tanto intrigado.
Tudo por causa do isolamento. Havia que preencher os dias de NINGUÉM. De alguma forma. Urgentemente. Aconselhou o médico.
A Mãe comprou então uma «caixa mágica». Uma televisão. Para NINGUÉM se distrair. E ensinaram-no a abri-la e a fechá-la. A Mãe pagá-la-ia aos poucos. A prestações. Todos os meses. Muitos meses. Com o suor do rosto. Com o esfregar escadas. Infinitas escadas.
Mas NINGUÉM só queria o pássaro azul. Que não se vendia a prestações. Nem a pronto pagamento...
— O pássaro azul há-de voltar. Há pássaros que emigram. Que vão para muito longe. No Inverno. Vão em bandos para outros climas e regiões. Mas regressam. Regressam sempre no bom tempo — dizia a Mãe para o conformar.
NINGUÉM escutava com alívio no peito e esperança nos olhos.
A ideia de que as aves voltavam sempre fez-lhe bem. Melhor que todos os medicamentos que o médico receitara.
O pássaro azul viria com a réstia de Sol. Com o céu azul. E os seus olhos, demasiadamente tristes, vestiram-se de anil.
Se NINGUÉM tivesse asas, iria ao seu encontro. E conven­ceria o seu amigo a regressar mais cedo. NINGUÉM enroupá-lo-ia nas noites frias. Nas noites de Inverno. Nas noites de inferno... Sem tecto estrelado.
Mas NINGUÉM tinha que esperar. Esperar ansiosamente. Desesperadamente. E entretanto quis matar o tempo. Começou a abrir a caixa mágica. A ver pessoas e carros. Outras ruas, cidades e países.
E viu guerras sangrentas que não queria ver. Fogos pos­tos. Destruição de florestas. Destruição de casas. Pessoas dormindo ao relento. Lautos banquetes e crianças famintas. Homens sem humanidade. Tiro aos pombos, aos pombos da paz. Poetas falando com espuma de raiva ao canto da boca. Homens agredindo-se brutalmente no ringue. E senhores de pomposos trajes ferindo animais com farpas e bandarilhas.
Por vezes, NINGUÉM hesitava em abrir aquela caixa mágica. Não sabia se era melhor estar só. Completamente só. A pensar no momento em que veria a Mãe. Ou no regresso do pássaro azul.
Um dia, dois homens levaram a caixa mágica. Eram empregados do Senhor Gordo. Da Loja da Esquina. Que a mandara buscar. Porque a Mãe não tinha pago a última prestação. Porque o dinheiro fora para a Farmácia. Para o Médico. Mas NINGUÉM não deitou uma só lágrima. E os seus olhos ficaram tão dolorosamente tristes como antes.

*

NINGUÉM descobriu depois um formigueiro. E entretinha-se a ver as formigas. Num louco vaivém sempre a trabalhar. Sua Mãe era uma formiga grande – pensou.
Ainda quis falar com uma. Todas passavam indiferentes. Sem sequer olharem para NINGUÉM.
Conversavam umas com as outras. Lá isso conversavam. NINGUÉM gostaria de saber o que diziam. Devia ser ainda sobre o trabalho. Devia!
NINGUÉM agarrou numa laboriosa formiga. Colocou-a sobre uma rolha de cortiça. E pô-la a boiar num alguidar com água. Ofereceu-lhe uma viagem de barco...
Mas nem assim conquistou a sua amizade. Nem assim lhe arrancou uma palavra.
NINGUÉM compreendeu que amizade é reciprocidade. Como o amor. Um dar e receber. Uma troca de atenções, de carinho, de respeito, de consideração. E as formigas devem ser muito amigas umas das outras. Mas nem olhavam para o pequeno NINGUÉM. Que entretanto as esqueceu...
Passados alguns dias NINGUÉM deparou com um ratinho. A sua corrida veloz assustara-o. Depois quis aproximar-se dele. Mas o ratinho fugia. E ficava a espreitá-lo por um minúsculo buraco. NINGUÉM dava-lhe do seu pão. Ele comia. Mas sempre às escondidas. Nunca na sua presença. E muito menos nas suas débeis mãozitas.
O pequeno rato tinha medo. Embora NINGUÉM jamais lhe fizesse mal. Mas como convencê-lo? Se fugia sempre. À menor aproximação. Ao menor passo. Ao menor movimento dos lábios para lhe falar.
Então NINGUÉM compreendeu que era importante o diálogo. E a confiança.
Cada vez mais NINGUÉM desejava a companhia do pássaro azul. Aquele Inverno tão longo estava a acabar. Quando o pássaro regressasse, havia de ter coragem. Coragem para dizer-lhe as palavras que ficaram no silêncio. Que guardara no fundo do coração.
À noite a réstia de Céu começava a ter o semblante das cidades. As estrelas pareciam luzes assinalando casas. Ou faróis alertando aves nocturnas. Ou holofotes iluminando seres extra-terrestres.
Para NINGUÉM, o cintilar das estrelas era o sinal dos habitantes do Céu. E dos Anjos. Dos Anjos e dos habitantes do Céu. Para comunicarem com as pessoas da Terra. Talvez o Pai procurasse dizer alguma coisa. Com aquele pisca-pisca das estrelas. Mas estaria noutra fatia do Céu. Que não se via daquele velho caixote cravado no telhado de telhas partidas.

*

Numa noite, um vaga-lume poisou no vidro da janela. Numa daquelas noites em que NINGUÉM se empoleirava sobre o tosco banco de madeira. E NINGUÉM teve a sensação de que um bocado de Estrela se desprendera do Céu. Viria visitá-lo? Também acendia e apagava. Como as estrelas do campo azul.
Mas o pirilampo voou de novo. Sem que NINGUÉM pudesse tocar-lhe. Sem que NINGUÉM pudesse perguntar-lhe de onde vinha.
Dias depois uma moleirinha entrou no velho caixote. Talvez viesse dar uma boa nova. NINGUÉM correu para ela. Na ânsia de apanhá-la, tirou-lhe as asas sem querer. Ela ficou triste. Sem se mexer nem andar. Então NINGUÉM empurrou-a. Com a débil mãozita. E viu que a borboletinha já não parecia o que era. Já nem podia voar. Compreendeu o que fizera e quis colar as asinhas... Não conseguiu. Os seus olhos tristes ficaram ainda mais tristes. Embora no mundo de NINGUÉM haja homens a tirar as asas a outros homens. Conscientemente. Deliberadamente.
NINGUÉM quis dar-lhe de comer. Mas a moleirinha não comia pão nem sopa. E agora não voava. Não podia ir à procura de alimento.
NINGUÉM foi encontrá-la inerte no dia seguinte. Sem vida. E dos seus olhos vestidos de negro brotaram lágrimas de dor. E as débeis mãozitas colocaram-na no parapeito da janela. Para que alguma Estrela a viesse buscar.
NINGUÉM contou à Mãe a morte da moleirinha. E ficou a saber que elas se alimentam do néctar das flores.
Mais tarde outra moleirinha entrou no velho caixote. NINGUÉM correu a afugentá-la com amor. Precisava da sua companhia. Lá isso precisava. Mas sorriu ao vê-la voar pela janela fora...

*

Certa noite NINGUÉM sonhou com o regresso do pássaro azul. E de manhã acordou com o bater na vidraça do velho caixote. Onde vivia.
De um salto sentou-se na cama. Seria de facto o regresso do pássaro azul? Ou ainda estaria a sonhar? Teve vontade de ir a correr. Mas ao mesmo tempo receava uma desilusão. Não seria o vento a bater a janela contra o velho caixote? Havia que vencer aquela angústia, feita de medo e esperança.
Como um sonâmbulo foi buscar o tosco banco de madeira. Subiu nervosamente para cima dele. Os olhos transfiguraram-se-lhe. Vestiram-se de verde ao ver o pássaro azul. Era ele. Não havia dúvida. Era ele. Ele! Ele!
Abriu-lhe a janela, acariciou-o. Passou as débeis mãozitas pelas penas. Pelas penas do pássaro azul. As suas desapareceram com aquele regresso...
Vendo-o ferido na asa correu a buscar um frasco e algodão. E em jeito maternal pintou a ferida de líquido vermelho.
— Quem lhe teria feito aquela ferida? Talvez um bom caçador. Com muita pontaria. Mas um mau homem. Com pouca sensibilidade — reflectiu NINGUÉM.
A amizade com o pássaro azul cimentava-se. Cada vez mais. NINGUÉM abrira o coração. Deixara sair, uma a uma, todas as palavras que há muito calara dentro de si.
E o pássaro azul falava-lhe da longa viagem que acabara de fazer.
E NINGUÉM adormecia feliz ao ouvi-lo. Era como se tivesse uma avozinha, de cabelos brancos, a contar-lhe histórias. Só que as histórias do pássaro azul eram vividas por ele. Eram verdadeiras.
NINGUÉM sentia-se a voar, espaço fora. Enquanto escutava o pássaro azul. Como se flutuasse com ele. Todos os dias. E maravilhado observasse as brancas montanhas. Os verdes prados e florestas. As cidades e as aldeias. As casas pequenas. As pessoas minúsculas. E aqui e além o imenso mar. Por vezes tão azul como o azul do Céu.
As descrições do pássaro azul sobre a longa viagem encantavam NINGUÉM. Mas o seu sonho acordado era voar até ao Céu. Uma vez lá, o Pai levá-lo-ia a passear de estrela em estrela. Disso estava certo. Já que na Terra não podia andar com ele. De rua em rua. Como as outras crianças.
O pássaro azul comoveu-se com o desejo de NINGUÉM. E prometeu voar com ele. Ao mesmo tempo que afastava uma lágrima com a asa. Iriam numa noite de lua cheia. Naquele mês de Agosto. Em que o luar é mais forte. Para descobrirem mais facilmente a Estrela do Pai.
NINGUÉM não quis partir sem primeiro dizer à Mãe. Esperou longos dias. Até poder falar-lhe da projectada viagem.
Mas a Mãe de NINGUÉM ficou preocupada ao ouvi-lo. E foi de novo a correr chamar o médico. Este considerou que o isolamento era uma vez mais a causa de tal estado.
Tratava-se, em sua opinião, de uma perturbação mental. De um desarranjo de cabeça. NINGUÉM iria primeiro para o Hospital. E depois para uma Creche. Mas NINGUÉM esteve poucos dias internado. Os psiquiatras concluíram que NINGUÉM não tinha nada de anormal.
Na Creche NINGUÉM foi encontrar um outro mundo. Educadores e muitas outras crianças. Já tinha com quem falar.
Tudo aquilo teria sido bom. Mesmo muito bom. Mas não agora. Agora que tudo estava planeado para a grande viagem ao Céu.
E NINGUÉM chorava em vez de brincar. Agora tinha à volta um jardim, bolas, baloiços, rapazes e raparigas. Podia brincar... Mas NINGUÉM chorava! Chorava porque queria ir para casa. Para o velho caixote cravado no telhado de telhas partidas.
Queria dizer ao pássaro azul o que acontecera. Fora tudo tão repentino. Não pudera avisá-lo. Queria vê-lo. E ouvi-lo dizer que mantinha a sua promessa de o levar à Estrela. A ver o Pai.
Mas ninguém escutava NINGUÉM. Os adultos comentavam que não estava melhor. E algumas crianças troçavam dele. Com risos e ditos.
Depois começaram a escutá-lo. Até que deixaram de jogar à bola e andar de baloiço. Para escutarem os diálogos entre NINGUÉM e o pássaro azul.
O Director da Creche entendeu que NINGUÉM estava a prejudicar as outras crianças.
E NINGUÉM foi transferido para outra Creche. E as crianças foram previamente avisadas. Não deveriam dar atenção às conversas de NINGUÉM.
Algumas menos sonhadoras chamaram-lhe tolo. Por gestos. Por palavras. Por palavras e gestos.
Os olhos demasiadamente tristes de NINGUÉM choravam. Não por aquele nome. Não por aquele insulto. Que culpa tinham elas de não conhecerem o pássaro azul? De não o terem como amigo?
Chorava porque nunca mais voltara a ver o pássaro azul, isso sim! E estava a perder a esperança de passear de estrela em estrela.
Um dia NINGUÉM, ao contemplar as flores do jardim e o firmamento, viu o pássaro azul. Correu e gritou por ele. Com toda a força.
As outras crianças riram. Riram muito. Mas Miguel viu um pássaro azul. Grande e azul. A descer em direcção a NINGUÉM. E poisar na árvore mais próxima.
Donde estavam não ouviam o que NINGUÉM e o pássaro azul diziam. Mas viram NINGUÉM regressar. E pela primeira vez aos saltos. Aos saltos. Alegre e feliz. Como se saltasse à corda com o arco-íris.
Uns mais crentes, outros menos. Mas todos falavam da amizade de NINGUÉM com o pássaro azul.
Só Miguel se aproximou de NINGUÉM. Porque também o Pai dele habitava aquele campo azul. Onde as estrelas nascem como papoilas.
NINGUÉM via em Miguel o irmão com que sonhara. Podia contar-lhe tudo. Tudo. Ele não ria. Absorvendo cada palavra pronunciada. Talvez o Pai dele dormisse numa Estrela próxima da Estrela de seu Pai.
Ao cair de uma noite o pássaro azul apareceu. Junto ao jardim da Escola. E – como prometeu – voou rumo ao Céu levando NINGUÉM.
No dia seguinte NINGUÉM falou da viagem. Aos educadores e às crianças. Contou a deslumbrante viagem pelo espaço infinito. Os planetas e galáxias que avistara. As estrelas que percorrera.
Os jardins móveis e os repuxos de água multicor que observara. Os lagos que atravessara cavalgando em cisnes de prata. As crianças e homens cantando em coros que escutara. E sobretudo a alegria de ver o Pai. Poeta e pintor. E de ter dourado com ele arestas das Estrelas.
Fora tudo tão belo. Belo demais para caber nas palavras do pequeno NINGUÉM.
As crianças ouviam encantadas a narração de NINGUÉM. Muito especialmente MIGUEL. Que aguardava ansiosamente um dia. O dia em que um pássaro azul o levasse também a ver o Pai.
Porém os adultos olhavam NINGUÉM com ares descrentes. Os adultos só acreditam no que vêem.
Para o Director da Creche, NINGUÉM era prejudicial às outras crianças. E NINGUÉM voltou para o velho caixote cravado num telhado de telhas partidas.
Miguel chorou à despedida. NINGUÉM abraçou-o fraternalmente. Mas não deitou uma lágrima. Ia poder falar mais tempo com o pássaro azul.
E assim foi num dia. Quando NINGUÉM já vestia os olhos de amarelo. Amarelo de desespero por estar só. O pássaro azul surgiu no parapeito da janela.
NINGUÉM pediu-lhe que o levasse para o Céu. Para a Estrela onde o Pai dourava os contornos com arte. Lá tudo era mais belo. Desde a harmonia das coisas. E das pessoas.
Que contraste com o que vira na caixa mágica!
Mas o pássaro azul retorquiu-lhe:
— NINGUÉM, o teu lugar é aqui na Terra. Mas poderás lá ir as vezes que quiseres. Veloz como o teu pensamento.
— Eu quero ficar lá sempre. Porque lá tudo é mais bonito. Maravilhoso.
— Tu não percorreste tudo. Foi a tua imaginação e os teus olhos que emprestaram beleza ao que viste. Virás a gostar da Terra. Basta que a olhes com os mesmos olhos. E um dia terás pena de ser forçado a deixá-la. Até esse momento tu tens uma missão a cumprir. Tu fazes falta, NINGUÉM. Nem imaginas a falta que fazes.
— Como poderei eu, tão pobre, fazer falta?
— Porque sabes sonhar. Sonhar acordado. Porque amas o que é belo. O céu. As flores. Os animais. Porque és sensível à dor alheia. Porque sofres quando vês sofrer. Porque tens alma de poeta.
— Como sabes?
— Observei-te enquanto olhavas a caixa mágica. Vi quanto sofrias em cada imagem de guerra. Por cada criança com fome. Por cada pobre sem abrigo. A cada soco. A cada estocada. A cada tiro. A cada destruição. E tenho provas da tua bondade. Ao repartires o pão comigo. Ao tratares da ferida que me fizeram. Ao quereres dividir a comida pelo irmão que desejavas ter. Vi-te no jardim a acariciar uma flor. Como se fosse Princesa. Vi-te chorar quando os rapazes roubaram um ninho. Vi-te perdoar insultos com resignação. A tratares as estrelas e as pedras como irmãs. Vi-te beijar as mãos calejadas do velho jardineiro. E oferecer duas lágrimas ao educador que não te compreendeu.
— E que posso fazer eu?
— Lutar por ti. Por tua Mãe. Por todos os que vivem como tu. Em velhos caixotes.
— Mas eu detesto as lutas. As guerras.
— Poderás lutar sem armas. Uma frase ou um poema vale mais que uma espingarda. Poderás tocar o coração dos homens. Um avarento, um ladrão e até um assassino podem arrepender-se. E tornar-se bons. É preciso que alguém lhes faça sentir a maldade. Os monstros que albergam. Que trazem dentro de si. Que não lhes dão nenhuma felicidade. E que é necessário arrancar-lhes. Como as carraças aos pobres cães. Ou o joio ao loiro trigo.
— Esses «monstros» são os demónios de que me falaram na Creche?
— Chama-lhes doenças da alma, se quiseres.
— E o que é a alma?
— Direi que é a própria vida. Como que a corda de um boneco. De um boneco de corda...
— Não entendo. Mas que poderei eu fazer?
— A Terra precisa de poemas e canções de amor. E de actos. Muitos actos de amor. Tua Mãe também faz da sua vida de trabalho um verdadeiro hino de amor. Que te oferece todos os dias. Discretamente. Quando esfrega as escadas, a própria escova canta uma canção de amor. E acalenta-lhe a esperança de dias melhores. Embala-a na ideia de que um dia serás grande. E feliz.
— Mas pergunto de novo, o que poderá fazer um pobre como eu?
— Houve poetas pobres. Pobres de bens materiais. E de cultura. Alguns analfabetos. Mas ricos. Muito ricos de sensibilidade. De imaginação. imaginação. Verdadeiros filósofos da vida. Amantes do Ser e não do Ter.
— Mas afinal quem és tu, que sabes tantas coisas? — perguntou intrigado o pequeno NINGUÉM.
— Eu, eu — balbuciou nervosamente o pássaro azul. Depois quedou-se num total silêncio. E NINGUÉM continuou a interrogá-lo:
— És Fada ou ave encantada? Ou vieste de outro Planeta? Em algum disco voador? Ou és sonho acordado? Ou serás o poeta de meu Pai?
E de repente o pássaro azul ergueu-se. E desfez-se em fumo perfumado.
NINGUÉM ancorou as lágrimas ao cais do seu coração. E sentiu que no sangue das suas veias navegava um poeta.
Iria ter a coragem dos gigantes. Que importava ser pequeno? Ainda não sabia escrever. Mas o pássaro azul até lhe falara de poetas analfabetos.
A ideia de ser útil aos outros encheu-lhe a alma de alegria. E os seus olhos demasiadamente tristes de cor de violeta vestiram-se para sempre de rosas. De rosas brancas.


O tempo passou. Passou a correr. E NINGUÉM cresceu. Hoje NINGUÉM é um HOMEM. Hoje NINGUÉM É ALGUÉM. Porém, os seus olhos continuam tristes. Muito tristes. Porque continuam a existir muitos NINGUÉNS.



Fernando Cardoso
Ninguém e o pássaro azul
Portugalmundo, 1998
Texto adaptado

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