quinta-feira, 5 de julho de 2007

Um Poder Absoluto - Ana Glória Lucas

Além-Mar
Março, 2003

Excertos

São mais poderosas do que muitos Estados. As empresas multinacionais impõem as suas regras, sobretudo junto dos países pobres, escolhem os de mão-de-obra barata para montar as suas fábricas, poluem e exploram trabalhadores à medida dos seus interesses, sempre na lógica do lucro. E, cúmulo dos cúmulos, ainda se permitem algumas vezes exigir indemnizações a países que têm milhões de habitantes ameaçados de fome.
Comecemos por definir o que é uma empresa multinacional. Segundo o Centre Europe-Tiers Monde (Cetim), um organismo sedeado em Genebra e que actua como consultor das Nações Unidas, trata-se de “pessoas jurídicas de direito privado, com múltipla implantação territorial, mas com um centro único de decisão. (...) Desenvolvem a sua actividade na produção e nos serviços, praticamente em todas as esferas da actividade humana, e também na especulação financeira. E nestas três esferas actuam simultânea, sucessiva ou alternadamente”.
Mais adiante, no mesmo documento do Cetim, de Junho de 2002, pode ler-se: “As suas actividade abarcam diferentes territórios nacionais, variando com rapidez e relativa frequência os lugares em que estão implantadas, em função da sua estratégia baseada no objectivo do lucro máximo.” E, a seguir: “O carácter transnacional das suas actividades permite-lhes iludir o cumprimento das leis e regulamentos nacionais e normas internacionais que consideram desfavoráveis aos seus interesses”.
E, no objectivo de obter o máximo lucro, objectivo esse “que não admite nenhum obstáculo”, são frequentes as práticas que passam pela promoção de guerras de agressão e conflitos inter-étnicos para controlar os recursos naturais do planeta e favorecer a expansão e os lucros da indústria bélica”, “a violação dos direitos laborais e dos direitos humanos em geral” e “a degradação do meio ambiente”, para além da corrupção de funcionários para se apoderarem dos serviços públicos essenciais mediante privatizações fraudulentas e lesivas dos direitos dos utentes” e da “corrupção das elites políticas, intelectuais e dos dirigentes da sociedade civil”.
Neste documento, o Cetim chama a atenção - aliás já não pela primeira vez – para a “confusão entre poder económico e poder político”, nomeadamente no caso dos Estados Unidos, onde tem a sua sede a maioria das multinacionais mundiais, e recorda como já há quatro décadas o então presidente Dwight Eisenhower chamava a atenção para a influência nefasta que tinha sobre o Governo o “complexo militar-industrial”. E lembra como as três grandes figuras da actual administração George W. Bush, Dick Cheney e Colin Powell tinham antes os seus nomes ligados às indústrias petrolíferas e da aviação e comunicações.
O poder das multinacionais estende-se neste momento à própria Organização das Nações Unidas, que lhes abriu as portas através do denominado “Global Compact”, da qual fazem parte algumas das principais multinacionais mundiais, como a British Petroleum, a Shell, a Nike, a Nestlé e a Ciba-Geigy, para citar apenas algumas. A finalidade anunciada por Kofi Annan é a de corrigir os desequilíbrios da globalização, mas a verdade é que um pacto deste tipo acaba por se traduzir numa certa promiscuidade entre empresas e um organismo internacional como a ONU, que, de resto, já em 1993 suprimira organismos criados para manter um controlo sobre as actividades das multinacionais, especialmente na área social.
Calculam-se em 63 mil as empresas multinacionais com 690 mil filiais estrangeiras. Controlam dois terços de todo o comércio mundial e são mais poderosas do que muitos Estados, mesmo ricos. Por exemplo, o volume de vendas da General Motors (EUA) é superior ao produto interno bruto da Dinamarca, e o da Exxon-Mobil (EUA) supera o da Áustria. As 23 multinacionais mais poderosas vendem mais do que exportam países como o Brasil, a Indonésia ou o México.
Só que estes volumes de vendas raramente se traduzem em riqueza para os países onde as multinacionais estão implantadas. Veja-se como exemplo o caso da Bolívia. Hidrocarbonetos, telecomunicações, caminhos-de-ferro, transportes aéreos e electricidade estão nas mãos de multinacionais, que nos últimos cinco anos eliminaram 10 mil postos de trabalho. As reservas de gás natural são as segundas mais importantes da América Latina, avaliadas em 80 mil milhões de dólares. As exportações de gás só para o Brasil renderam às multinacionais algo como 5000 milhões de dólares em duas décadas, tendo o Estado boliviano recebido em impostos e outras regalias apenas 80 milhões de dólares.

Violações dos direitos

A área de actuação das multinacionais estende-se a todos os sectores da economia. Dos combustíveis à aviação, dos têxteis ao calçado, dos pesticidas à indústria automóvel, da indústria alimentar aos produtos de higiene, dos produtos farmacêuticos às telecomunicações e aos computadores, nada fica fora da alçada das multinacionais.
No que se refere aos trabalhadores, as multinacionais não são exactamente os melhores amigos destes. Numa contradição espantosa com os números que representam para a economia mundial, as multinacionais empregam apenas três por cento da força de trabalho mundial, preferindo muitos vezes os chamados países do Sul, onde a mão-de-obra é abundante e barata – mesmo que pouco qualificada.
De um modo geral, nos Estados que criam condições atraentes para a implantação das multinacionais, estas traduziram-se numa descida das condições laborais e dos direitos dos trabalhadores, com um aumento da precaridade dos postos de trabalho. E os despedimentos são frequentes para reduzir custos e tornar as empresas mais atraentes, seja para aquisição por outras seja para cotação nas bolsas.
Em muitos países, são as populações indígenas as que mais sofrem, vendo-se muitas vezes expulsas das suas terras – especialmente se estas forem ricas em recursos naturais a fim de facilitar a actividade das grandes empresas estrangeiras.
O meio ambiente também não está nas preocupações das multinacionais, que actuam indiferentes à contaminação ambiental que podem causar. Resíduos industriais poluentes ou resíduos médicos e hospitalares são muitas vezes largados em países do chamado Terceiro Mundo, sem qualquer respeito pelas populações que vivem nas proximidades. Talvez por todas estas razões as multinacionais tenham levantado tantas objecções à ideia da criação de um tribunal mundial para o ambiente, sugerida durante a Cimeira da Terra que se realizou em Joanesburgo, em Setembro de 2002.
A propósito, recorde-se aqui o de¬sastre que afectou a localidade indiana de Bhopal em Dezembro de 1984, quando uma fuga de gás tóxico numa fábrica de pesticidas da Union Carbide (EUA) provocou quase 15 mil mortos, no imediato e ao longo destes mais de 18 anos, e uma contaminação ambiental que se estendeu por um raio de 1,5 quilómetros.

Disputas judiciais

O mais irónico de tudo isto é que as multinacionais não hesitam em recorrer a processos jurídicos contra países, por mais pobres que sejam, quando sentem que os seus interesses estão em causa.
O caso mais recente e flagrante é talvez o da multinacional suíça Nestlé, que, em Dezembro de 2002, processou a Etiópia por uma nacionalização que remonta a 1975, exigindo-lhe uma indemnização de seis milhões de dólares. A Nestlé, que controla o mercado de café, é uma das 15 empresas mais rentáveis do planeta, tendo obtido em 1999 lucros da ordem dos 3000 milhões de dólares. Isto enquanto a Etiópia, que em 2002 não conseguiu mais de 175 milhões de dólares com as vendas do café, devido à descida do preço desta matéria-prima, atravessa de novo uma crise alimentar que ameaça de fome 12 milhões dos seus habitantes.
Em Fevereiro de 2002, a multinacional norte-americana Bechtel Corporation pediu uma indemnização de 25 milhões de dólares ao Governo boliviano, na sequência do cancelamento de um contrato de 40 anos para que a empresa Aguas del Tunari, uma subsidiária da Bechtel, fornecesse água à cidade de Cochabamba. O contrato foi cancelado após violentos protestos de rua dos habitantes locais contra o aumento considerável do preço da água que o contrato significou. Em 2000, o mesmo ano dos protestos, a Bechtel apresentou receitas da ordem dos 14.300 milhões de dólares.
Em Abril de 2001, nada menos de 39 multinacionais farmacêuticas processaram o Governo de Pretória por vender medicamentos genéricos contra a sida, num país onde há cerca de cinco milhões de infectados com o vírus. O processo acabou por ser retirado, na sequência de uma campanha internacional.
Ainda na África do Sul, mas num processo em sentido inverso, duas organizações não governamentais, a Khulumani e a Jubilee South Mrica, intentaram nos EUA uma acção contra empresas europeias e norte-americanas – entre elas a União de Bancos Suíços, a Exxon-Mobil e a IBM que, no passado, ajudaram o regime do apartheid no seu desrespeito pelos direitos humanos.

Código de conduta

É consensual entre os especialistas que as multinacionais precisam de adoptar uma atitude mais ética a fim de acabar com alguns dos males que parecem ser intrínsecos à sua actividade: corrupção, violações dos direitos humanos, contaminação ambiental....
Em 1999, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) lançou uma conven¬ção internacional contra as empresas que recorrem à corrupção para atingirem os seus objectivos, as quais ficam sujeitas a acções judiciais, e, no ano seguinte, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, concretizava a sua iniciativa “Global Compact”, a pretexto, como atrás se disse, de corrigir os desequilíbrios da globalização e de fazer respeitar princípios relativos a direitos humanos, normas de trabalho e meio ambiente. Simplesmente, não existem mecanismos para verificar se estes princípios são ou não respeitados.
Logo na altura ficou claro que não se tratava de um código de conduta para multinacionais, porque estas não aceitam submeter-se a nenhum. “Evidentemente que não podemos criar um código de conduta para as empresas. Isso seria uma missão impossível para a ONU”, disse na altura Georg Kell, director executivo do “Global Compact”.
Resta, assim, acreditar que as multinacionais possam algum dia vir a pensar em algo mais do que o lucro próprio.

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