quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A ESCASSEZ ORGANIZADA


Jean Ziegler
O império da vergonha
Porto, Edições Asa, 2005


excertos


A ESCASSEZ ORGANIZADA


Nos nossos dias constituíram-se novos feudalismos, infinitamente mais poderosos, mais cínicos, mais brutais e mais astutos que os antigos. São as companhias transcontinentais privadas da indústria, da banca, dos serviços e do comércio.
Chamo cosmocratas a esses novos senhores feudais. São os novos soberanos do império da vergonha.
Observemos o mundo que eles criaram.
É verdade que nem a fome nem o endividamento são fenómenos novos na História. Desde a noite dos tempos que os fortes têm os fracos presos pela dívida. No mundo feudal, caracterizado pela ausência de trabalho assalariado, o senhor submetia os seus servos pela dívida. Forma arcaica da produção agrícola, que sobreviveu até aos nossos dias, o sistema dos «cupões» praticado pelo latifúndio equatoriano, paraguaio ou guatemalteco escraviza do mesmo modo o trabalhador rural (Não recebendo salário, mas cupões, o trabalhador troca estes últimos por mercadorias na loja do latifundiário. Como os cupões são sempre insuficientes para garantir a subsistência da sua família, o trabalhador endivida-se para toda a vida.)
Também a fome acompanha a Humanidade desde o seu aparecimento na Terra. As sociedades neolíticas africanas, os mais antigos dos grupos exógamos conhecidos, viviam da recolecção. Os seus membros viviam da apanha de raízes, de ervas e de frutos selvagens de uma estação das chuvas à seguinte. Não conheciam nem a agricultura nem a domesticação dos animais, e praticavam uma forma rudimentar de caça miúda. O infanticídio foi a sua primeira instituição social. No começo de cada estação seca (longo período de mais ou menos sete meses, no curso do qual nenhuma colheita era possível e a caça era rara), os mais velhos contavam as bocas a alimentar e as provisões disponíveis. Em função de uma avaliação prospectiva, eles mandavam eliminar um número variável de recém-nascidos por seus pais.
No cerne da obra imensa de Karl Marx reside uma preocupação essencial: a definição da falta. Até ao seu último fôlego, Marx esteve persuadido de que o homem viveria no reino da carência durante mais alguns séculos. E o par maldito dono-escravo ainda estava longe de se desfazer.
Marx recorre, para tratar desta questão, a uma expressão difícil de traduzir: «Der objektive Mangel» («a carência objectiva»). Esta frase designa uma situação onde os bens materiais disponíveis na Terra são objectivamente insuficientes para satisfazer todas as necessidades incompressíveis, elementares, dos homens. Em vida de Marx (como durante todos os séculos precedentes), a carência objectiva governou de facto o planeta, os bens disponíveis na Terra eram definitivamente insuficientes para satisfazer as necessidades vitais dos homens. Toda a teoria marxista da divisão do trabalho, das classes sociais, da origem do Estado, da luta de classes é fundada nesta hipótese da carência objectiva de bens.
Mas depois da morte de Marx, e mais particularmente durante a segunda metade do século XX, uma formidável sucessão de revoluções industriais, tecnológicas e científicas dinamizou as forças produtivas. Hoje, o planeta não suporta o peso das suas riquezas.
Dito de outro modo: o infanticídio, tal como continua a ser praticado dia após dia, já não obedece a nenhuma necessidade.
Os donos do império da vergonha organizam conscientemente a escassez. E esta obedece à lógica da maximização do lucro.
O preço de um bem depende da sua raridade. Quanto mais raro é um bem, mais elevado é o seu preço. A abundância e a gratuidade são os pesadelos dos cosmocratas, que consagram esforços sobre-humanos a conjurar tal perspectiva. Só a carência garante o lucro. Organizemo-la!
Os cosmocratas têm um horror especial à gratuidade que a natureza possa propiciar. Vêem nela uma concorrência desleal, insuportável. As patentes sobre o vivo, as plantas e os animais geneticamente modificados, a privatização das nascentes de água devem pôr fim a tão intolerável facilidade. Voltaremos ao assunto.
Organizar a carência dos serviços, dos capitais e dos bens é, nestas condições, a actividade prioritária dos donos do império da vergonha. Mas essa carência organizada destrói no planeta, todos os anos, a vida de milhões de homens, de crianças e de mulheres.
Hoje, é possível dizer-se que a miséria atingiu um nível mais pavoroso do que em qualquer outra época da História. É, assim, que mais de 10 milhões de crianças com menos de 5 anos morrem anualmente de subalimentação, de epidemias, de poluição das águas e de insalubridade. Cinquenta por cento destas mortes ocorrem nos seis países mais pobres do planeta. Quarenta e dois por cento dos países do Sul abrigam 90 por cento das vítimas.
Estas crianças não são destruídas por uma falta objectiva de bens, mas por uma distribuição desigual dos mesmos. Logo, por uma falta artificial.
Desde o começo do novo milénio, atentados, catástrofes, uma mais aterradora que a outra, sacodem o planeta. De Nova Iorque a Bagdade, do Cáucaso a Bali, de Gaza a Madrid, milhares de seres humanos são ceifados, queimados, dezenas de milhares feridos.
Nos países do hemisfério sul, as epidemias e a fome fazem cada vez mais vítimas. A exclusão e o desemprego grassam no Ocidente.
Mas os novos feudos capitalistas não cessam de prosperar. O ROE (rendimento dos fundos próprios) das 500 maiores companhias transcontinentais do mundo foi de 15 por cento por ano desde 2001 nos Estados Unidos, de 12 por cento em França.
Os meios financeiros desses empórios excedem, e de longe, as suas necessidades em investimento: é, assim, que a taxa de autofinanciamento se eleva a 130 por cento no Japão, 115 por cento nos Estados Unidos e 110 por cento na Alemanha. O que fazem, nestas condições, os novos senhores feudais? Recompram maciçamente na Bolsa as suas próprias acções. Pagam aos accionistas dividendos faraónicos, e aos administradores, gratificações astronómicas. (Em 20 de Julho de 2004, a Microsoft anunciava que os seus accionistas iam embolsar 75 mil milhões de dólares a título de dividendos durante o período 2004-2008.)
Mas nada os sacia! Os lucros supérfluos continuam a crescer.





A FOME

O massacre, pela subalimentação e pela fome, de milhões de seres humanos continua a ser o maior escândalo do início deste terceiro milénio. É um absurdo, uma infâmia que nenhuma razão justifica nem nenhuma política pode legitimar. Trata-se de um crime contra a Humanidade indefinidamente repetido.
Hoje, como eu já disse, todos os cinco segundos morre de fome ou de doenças ligadas à malnutrição uma criança com menos de dez anos. Deste modo, a fome terá morto em 2004 mais seres humanos do que todas as guerras juntas desencadeadas nesse mesmo ano.
Em que pé se encontra a luta contra a fome? O seu recuo é evidente. Em 2001, uma criança com menos de 10 anos morria todos os sete segundos. Nesse mesmo ano, 826 milhões de pessoas tinham ficado inválidas em consequência de subalimentação grave e crónica. Hoje são 841 milhões. Entre 1995 e 2004, o número das vítimas da subalimentação crónica aumentou 28 milhões de pessoas.
A fome é o produto directo da dívida, na medida em que é ela que priva os países pobres da sua capacidade de investir os fundos necessários para o desenvolvimento das infra-estruturas agrícolas, sociais, de transporte e serviços.
A fome significa sofrimento agudo do corpo, enfraquecimento das capacidades motoras e mentais, exclusão da vida activa, marginalização social, angústia do amanhã, perda de autonomia económica. Acelera o caminho para a morte.
A subalimentação define-se pelo défice dos aportes de energia contidos na alimentação que o homem consome. Mede-se em calorias – a caloria é a unidade de medida da quantidade de energia queimada pelo corpo.
No mundo, morrem anualmente 62 milhões de pessoas, ou seja, l por mil da Humanidade – todas as causas incluídas. Em 2003, trinta e seis milhões morreram de fome ou de doenças devidas às carências em micronutrientes.
A fome é, pois, a principal causa de morte no nosso planeta. E esta fome é obra do homem. Quem morre de fome morre assassinado. E o assassino tem nome: a dívida.
A FAO - Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – estabelece a diferença entre fome «conjuntural» e fome «estrutural». A fome conjuntural é devida ao brusco afundamento da economia de um país ou de uma parte da mesma. Quanto à fome «estrutural», essa é induzida pelo subdesenvolvimento do país.
Eis um exemplo de fome conjuntural. Em Julho de 2004, uma monção especialmente violenta submergiu o Bangladesh. Mais de 70 por cento deste país de 116 000 quilómetros quadrados ficou debaixo de água. Dos 146 milhões de pessoas que o habitam, três milhões ficaram sujeitas a morrer de fome. O Bangladesh é de facto um delta composto por múltiplos rios que se lançam no golfo de Bengala. Esses rios vêm dos contrafortes do Himalaia (Butão, Ladaque, Nepal). Quando chega a monção, a sua cheia torna-se violenta, imprevisível. As vagas arrancam árvores e casas, destroem barragens e diques, cobrem de uma água verde, cheia de limos, turbulenta, centenas de milhares de hectares de terras agrícolas e devastam os bairros ribeirinhos das cidades.
Em tempo normal, se assim se pode dizer, cerca de 30 000 crianças com menos de 10 anos ficam cegas todos os anos no Bangladesh, por falta de vitamina A. A OMS estima que devido às inundações esta cifra vai pelo menos quintuplicar em 2004.
A fome estrutural e a fome conjuntural são consequência directa da dívida. No que concerne à fome estrutural, isso é evidente. As relações de causalidade entre fome conjuntural e dívida, pelo contrário, exigem uma explicação.
Voltemos à fome excepcional do Bangladesh em 2004. As duas principais bacias hidrográficas responsáveis pelas inundações de Julho são as do Bramaputra e do Ganges. Ora, acontece que eu realizei, a pedido das Nações Unidas, uma missão no Bangladesh em 2002. Tratava-se precisamente de examinar os meios próprios para evitar a repetição deste tipo de catástrofes. No amplo gabinete do ministro dos Recursos Hídricos em Daca, passei horas e horas a estudar gráficos, estatísticas, projectos. Pois bem, o que ressaltou desse estudo foi que a tecnologia contemporânea permitiria, sem problemas de maior, domesticar o conjunto dos rios do Bangladesh. Tecnologicamente, as inundações provocadas pela monção seriam perfeitamente controláveis. Mas como o Bangladesh é um dos países mais endividados da Ásia do Sul, falta o dinheiro para represar os rios e quebrar a sua corrente.
A subalimentação severa e crónica destrói lentamente o corpo. Debilita-o, priva-o das suas forças vitais. A doença mais simples abate-o depois. A sensação de carência é permanente.
Mas os sofrimentos mais terríveis provocados pela subalimentação são a angústia e a humilhação. O faminto trava um combate desesperado e permanente pela sua dignidade. Sim, a fome provoca a vergonha. O pai não consegue alimentar a sua família. A mãe está de mãos vazias diante do filho, que chora de fome.
Noite após noite, dia após dia, a fome diminui as forças de resistência do adulto. Chegará o dia, e ele sabe-o, em que nem sequer já poderá vaguear pelas ruas, vasculhar os caixotes do lixo, mendigar ou procurar aqueles pequenos trabalhos ocasionais que lhe permitam comprar uma libra de mandioca, um quilo de arroz, para sustentar – mediocremente, é certo – a sua família. É corroído pela angústia. Está em farrapos; as sandálias, gastas; o olhar, febril. Vê a sua rejeição no olhar do outro. Muitas vezes os seus e ele próprio estão reduzidos a comer os detritos tirados dos caixotes do lixo dos restaurantes ou das casas burguesas.
Maria do Carmo Soares de Freitas, socióloga, e os seus colaboradores da Universidade Federal da Bahia realizaram um estudo de longa duração no bairro Pela Porco de Salvador, a fim de compreender como os próprios famintos vivem a sua situação. Com os Alagados, Pela Porco é um dos bairros mais miseráveis da metrópole do Norte, antiga capital do vice-reino lusitano do Brasil. Grassam ali a corrupção e o arbítrio policiais, a violência dos bandos armados, o desemprego endémico, a falta total de infra-estruturas escolares, sociais, de saúde, e a habitação é precária. É habitado por cerca de 9000 famílias. Os Textos dos Famintos é o título do volume, ainda não publicado, no qual toda a equipa compilou a palavra dos esfomeados (disponível em fotocópia no Instituto de Saúde Pública da Universidade Federal da Bahia).
Para exorcizar a vergonha, as vítimas da subalimentação crónica recorrem a frases como estas: «A fome vem de fora do corpo». A fome é o agressor, uma besta que me ataca. Nada posso fazer. Não sou responsável pela minha situação. Não devo ter vergonha dos farrapos que uso, dos choros dos meus filhos, do meu próprio corpo debilitado e da incapacidade em que me encontro de alimentar a minha família.
Os que se vêem reduzidos a alimentar-se dos dejectos tirados dos caixotes do lixo do centro da cidade, ou dos luxuosos hotéis que bordejam a praia de areia branca de Itapoa, dizem: «Preciso tirar a vergonha de catar no lixo, porque pior é roubar».
Muitas das mulheres e homens interrogados tratam a fome por «a coisa». «A coisa bate-me à porta». Atirar a fome para fora do seu corpo, considerar-se como a vítima de uma agressão, saber-se ferido por um adversário forte de mais: eis algumas defesas contra a vergonha.
Alguns habitantes também dizem: «Sentimo-nos perseguidos, ou pela polícia ou pela fome», ou ainda: «A fome é sempre um sofrimento que fere o corpo». A besta ataca-me, que hei-de fazer? Nada ou quase nada, «Porque ela é mais de que eu».
As palavras «perseguidos pela fome» fazem parte de quase todas as respostas.
Algumas das pessoas interrogadas, especialmente entre os adolescentes de ambos os sexos, revoltam-se contra a besta. Querem ripostar ao ataque, resistir. «A pessoa tem que ser forte, tem que fazer qualquer negócio; não ter vergonha, não ter medo; pedir a um e a outro, bulir no lixo, tem uns que até rouba, assalta, bole nas coisas dos outros; não pode ficar esperando as coisas cair do céu; tem que ter muita fé pra ficar com força, se levantar e andar, andar...»
Uma série particularmente pertinente de questões postas por Maria do Carmo e colegas diz respeito à «fome nocturna». A quase-totalidade das pessoas interrogadas, de todas as idades e sexos, tem visões nocturnas, sonhos compensatórios onde aparecem mesas cobertas com toalhas imaculadas, mal suportando o peso de montanhas de frutos, de carnes e de bolos. Estas alucinações consolam das privações físicas, da angústia lancinante e da dor.
Uma jovem mulher interrogada disse: «No tempo da noite, quando as crianças choram ou a violência (policial e dos bandos armados) assusta ainda mais, são produzidas insónia e visões».
Face a uma sociedade que o exclui e o priva de comida, o faminto agarra-se a estas quimeras. Elas devolvem-lhe, pelo imaginário, a sua dignidade de sujeito livre.
Dois mil milhões de pessoas sofrem daquilo a que as Nações Unidas chamam o hidden hunger, a fome invisível, ou seja, a malnutrição. Esta define-se pela carência de micronutrientes (sais minerais, vitaminas). São estas carências que provocam doenças em muitos casos mortais.
As calampas de Lima, as favelas de São Paulo ou os sórdidos bairros de lata das smoky mountains de Manila são locais de pestilência. Nas smoky mountains, onde vive meio milhão de pessoas, respira-se um odor pútrido. As ratazanas mordem no rosto os recém-nascidos. Naquelas cabanas de chapa, as mulheres, as crianças, os homens enganam o estômago com os restos de comida respigados em montes de imundices. O aporte de calorias até pode ser suficiente. Mas a composição da alimentação, essa revela carências perigosas.
Uma criança em situação de malnutrição crónica pode dar de comer à sua fome e no entanto agonizar por efeito de uma doença devida à falta de micronutrientes.
Nos 122 países do Terceiro Mundo onde vive, relembro, quase 80 por cento da população do planeta, a carência em micronutrientes provoca hecatombes.
Entre as doenças mais comuns e espalhadas devidas a esta insuficiência, há o kwashiorkor, frequente na África Negra, a anemia, o raquitismo, a cegueira. Os adolescentes vítimas do kwasbiorkor têm o ventre inchado, os cabelos que se tornam ruços, a tez amarela. Perdem os dentes. Quem for privado de modo permanente de um aporte suficiente de vitamina A fica cego. O raquitismo impede o desenvolvimento normal da ossatura da criança.
Quanto à anemia, essa ataca o sistema sanguíneo e priva a vítima de energia e de toda a capacidade de concentração.

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